“Nós mantemos a essência do começo do mundo”

Entrevista com o Cacique Tchydjo Ue conta um pouco como vivem e no que acreditam os guardiões da floresta e dos conhecimentos ancestrais da aldeia Fulkaxó

Redação NBE

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17/04/2024
“Nós mantemos a essência do começo do mundo” Vera Mari Damian

8 min de leitura

O Cacique Tchydjo Ue, nome de batismo Humberto Cruz, tem 76 anos, é viúvo desde 2023, tem 8 filhos 37 netos e 18 bisnetos.

Atualmente, Tchydjo Ue é o Cacique na aldeia Fulkaxó, às margens do Rio São Francisco, no estado do Sergipe. Na sua ausência, a irmã ocupa o posto de Cacique.

Os Fulkaxó são formados pela união das tradições entre os povos Fulni-ô, povos Kariri e povos Xocó. Recentemente, o povo Fulkaxó conseguiu reaver um pedaço de terra no qual estão construindo uma nova aldeia. O local foi resgatado em acordo com o “proprietário” das terras, um herdeiro de holandeses que também tem descendência indígena.

Em janeiro, os Fulkaxó realizam a grande cerimônia do Ouricuri, na qual reúnem cinco mil pessoas rezando para trazer o bem para o Planeta. Outras cerimônias menores de Ouricuri acontecem ao longo do ano.

Tchydjo Ue viaja por vários estados do Brasil e outros países para dar atendimentos. Curador há décadas, já atendeu milhares de pessoas, entre elas, o psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, o criador das Constelações Familiares, e sua esposa Sofia.

Homem indígena

Quando concedeu está entrevista exclusiva para o Nosso Bem Estar, em abril, a aldeia estava reunida na mata para mais um Ouricuri. Do Rio Grande do Sul, ele foi direto para Brasília para participar do Acampamento Terra Livre (ATL) 2024, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entre os dias 22 e 26 de abril.

Essa deverá ser a maior mobilização do movimento popular indígena do Brasil, que em 2024 completa 20 anos nesta luta pela garantia dos direitos dos povos indígenas e fortalecimento da democracia do nosso país.

  • Aqui, o curador Tchydjo Ue compartilha conosco algumas de suas visões de mundo:

Medicina indígena

Esta é uma vida longa, mas é pouco tempo para a gente poder trazer o que é de melhor para a população. É preciso a população enxergar o que temos para oferecer na parte da saúde.

Cada planta que a gente usa, nós colocamos um poder, um chamado espiritual para cada planta. Sempre falamos com o divino em cima de qualquer medicina que vamos passar para qualquer outra pessoa.

A cada local que a gente passa vamos expandindo este saber. Se o povo tivesse o entendimento do que o povo indígena tem para oferecer, seria muito valioso. Porque a gente tá aqui para melhorar. Para que a gente seja tudo um povo só, sem dividir raça e cor. Isto é o que atrapalhou e atrapalha o mundo inteiro.

A força do indígena é no campo espiritual. Como é de todo mundo. O conhecimento tá muito dentro da gente. Trabalhar com as ervas, qualquer um no planeta pode trabalhar. Mas é preciso ter o conhecimento.

É o que eu vejo que está faltando pra muitas pessoas. Conhecimento e entrar dentro de si próprio. Trabalhar com estas medicinas com uma força maior.

O povo indígena, e o povo negro também, ficou muito reprimido sem poder mostrar a sua cultura de cura. Hoje as aldeias estão se revelando.

Se a faculdades de Medicina botassem professores espirituais lá dentro para dar estas explicações para os alunos que vão se formar, estes médicos seriam formados mais fortes e com mais sabedoria.

Vejo que isto deveria estar dentro das universidades há muitos anos. Eu dei uma palestra destas nos Estados Unidos e vi que lá todos os jovens anotavam cada palavra que a gente falava. No Brasil dei uma palestra na UniRio e os alunos só na “palminha”. Não escreviam.

Homem indígena em ritual

O caminho do Xamã

Xamanismo para nós os indígenas do Brasil é pajelança. Mas hoje em dia trouxeram este nome de xamanismo. Quando a pessoa entra neste caminho do xamanismo tem que ter uma visão do campo do Planeta para ver o quanto o Planeta muda e também como mudam os caminhos. Para ele fazer a sua cerimônia de acordo com o universo.

A lua, o sol, as estrelas, a terra, o mar, a floresta, o vento... todos são seres vivos. É preciso entender isto para que a pessoa se torne um xamã.

Quando a criança nasce é apresentada para todos da aldeia, para que saibam que ela existe. Aos 10 anos ela começa a ser trabalhada, a participar de iniciações. Passa a ser observada pelos mais velhos. Quando for mais adulta, conforme o desenvolvimento que apresentar será passada a sua missão.

Eu, até os 40 anos, não sabia qual seria a minha missão. Trabalhava com os mais velhos, seguia os mais velhos. Meu pai sabia, mas nunca me dizia.

Um dia, o pajé Francisquinho mandou me chamar para ir representar ele no Rio de Janeiro, na Eco 92. Fiz lá o trabalho que ele mandou. Lá tinha várias aldeias. Elaboramos um documento para o Papa e para o presidente dos Estados Unidos a respeito das florestas, mas isso nunca foi divulgado.

No retorno, o pajé me disse que eu iria atravessar continentes. Eu não sabia nem o que era isso.

Naquela época, as pessoas não tinham o entendimento do povo indígena como tem hoje. Quem via índio não queria nem chegar perto. Eu não queria seguir este caminho porque sentia que tinha muita discriminação. Mas ele disse que era eu que deveria levar a aldeia Kariri Xocó pra muito longe, fazer palestras, danças, trabalhos espirituais de cura.

Então eu fui. Primeiro fui para os Estados Unidos, depois Peru, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai. Depois fui pra Londres, Holanda, Alemanha, Polônia, Espanha, França, Sibéria, Rússia e outros.

Hoje estão entendendo qual o nosso objetivo que é na área de cura**. As aldeias Kariri e Funi-ô trabalham com o objetivo de cura para o mundo inteiro, não só pra gente.** Quando entramos numa cerimônia dentro do nosso ritual, a primeira coisa é pedir a cura para todos (o mundo inteiro).

Sobre as guerras pelo poder no mundo

Ninguém veio para este mundo para não fazer nada. Viemos para fazer pela humanidade e para si próprio. O corpo precisa estar forte para poder saber cumprir mais a sua missão.

As ganâncias e o poder são muito vazias espiritualmente. Eles não têm tempo de olhar que horas nasce uma estrela, que horas o sol se recolhe ... não se preocupam com nada disto.

São pessoas mortas vivas. Mas eles espalham este poder que está trazendo as guerras.

Se a pessoa trabalhar num objetivo de saber o que é o vento, o que é a chuva, cada ser destes que Dedualhá (Deus) deixou para movimentar o planeta, não existiria o que está existindo de ganância e poder.

Deus deixou coisas boas na Terra, mas estão transformando em vários canais que não são baseados no que Deus deixou na Terra. Principalmente os homens de poder na Terra. Eles não sabem o que é a Terra. Não têm conexão com a Terra

No Ouricouri estamos o ano todo mandando bênçãos para todo o planeta.

Diversas pessoas indígenas

Longevidade

Meu pai faleceu em 2023 com 112 anos.

Para uma boa e longa vida é preciso as pessoas terem conexão sobre o respeito da natureza e do universo. Sempre ter um campo espiritual que você se apegue e se desenvolva, independente de qual seja a religião. Onde tiver forças maiores espirituais não será um trabalho só pra si. Mas um conjunto de muitas forças. Juntando as forças pode mudar o mundo.

Eu vejo hoje nas religiões muitas coisas que não vêm da palavra de Deus.

Nós sabemos que a chuva, o sol, o frio, o calor, o fogo – tudo tem um campo espiritual diferente. O índio que convive com isto tem medo de errar porque pode ser punido, por sua própria natureza.

Se eu for cuidar de alguém e ancorar a cura com a força do trovão e usar de má forma eu serei cobrado. Em outro momento vou precisar da força do trovão e não vou ter.

E o curador erro vai se refletir a partir do seu próprio erro. Se não for na minha pessoa, pode ser num filho, num neto, num bisneto. Porque a base quebrou.

O curador tem que ter muito cuidado com Tchaya Kaka (no idioma funi-ô corresponde ao conceito de karma) porque a queda é muito maior para o curador do que para a pessoa que for receber a cura.

Cosmologia

O mundo é cheio de campos espirituais. Cada campo que Deus deixou na mãe Terra a gente vê como um paraíso. Cada flor, você vê que tem cores diferentes. Cada pé de árvore são folhas diferentes.

Nós estamos dentro de dois mundos: mundo terra e mundo ar. Terra e Deus. Os dois canais que tem o movimento do povo. Nós temos o conhecimento até dos espíritos que estão debaixo da Terra.

Dedualhá é o Deus construtor do Mundo. Mas para girar o mundo tem vários seres. A ordem é de Dedualhá, mas o planeta é movido pelos vários campos espirituais.

Cada povo indígena tem um Deus na palavra do seu idioma, mas o Deus é um só.

Os povos indígenas do Nordeste foram os primeiros dizimados pelos povos que vieram para cá. Nós tínhamos que seguir o que eles queriam. A nossa força até hoje foi a de fazer o que eles queriam, e depois entrávamos no mato e fazíamos este ritual que mantemos até hoje. As aldeias Fulni-ô e Kariri nunca se separaram e mantiveram a sua base espiritual.

Nós mantemos a essência do começo do mundo. A nossa preocupação hoje é que a cidade cresceu e está muito perto da aldeia Kariri. Os jovens da aldeia estudam na cidade e estão se esquecendo do mais importante que sustentamos até hoje. Estes jovens não tiveram os ensinamentos dos guardiões como era na minha época. Hoje os jovens participam das cerimônias de cinco mil pessoas, mas estão muito ligados na cidade. Não implantam o campo espiritual que é passado pra cada um deles.

Se eu não tivesse este campo eu não estaria mais aqui.

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