Sem árvores, sem vida
Até poucos anos atrás, os tomadores de decisão eram menos analfabetos ambientais

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O que para uns é poesia na paisagem, saúde e vida, para outros é sujeira e incomodação. Inúmeras pessoas amigas ou conhecidas me pedem, geralmente desesperadas, alguma orientação sobre como impedir o corte de árvores em ruas e nos condomínios.
E o mais paradoxal: Porto Alegre já foi exemplo para o Brasil nesse assunto. Tanto é que no dia 16 foi celebrado os 40 anos do primeiro Encontro Nacional de Arborização Urbana em Porto Alegre. A iniciativa da época foi tão relevante que culminou na criação da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana. E tudo foi orquestrado pela bióloga Maria do Carmo Sanchotene, uma profissional da SMAM (ex-Secretaria do Meio Ambiente), que nos deixou em dezembro de 2021.
Hoje, em Porto Alegre, a arborização urbana está à mercê do que dita o mercado, das construtoras ou das vontades de síndicos ou qualquer um que entende que os galhos podem “atrapalhar” seu negócio.
Uma amiga entrou em contato muito chateada porque a síndica do prédio onde mora foi procurada por um dono de um estabelecimento vizinho para cortar uma das mais belas árvores do jardim, porque os galhos provocariam “sujeira” na área em que aluga, que está sem processo de instalação. Isso em plena Padre Chagas, zona nobre da capital gaúcha, no coração do bairro Moinhos de Vento.
Anos atrás, até uma reunião com o então secretário do meio ambiente de Porto Alegre eu participei para tentar evitar o corte de duas paineiras no condomínio em frente ao que moro. Depois dessas, várias outras árvores da minha rua foram derrubadas pela vizinhança. Sempre há técnicos que topam emitir laudos para autorizar procedimentos conforme a vontade do freguês.
Vale lembrar que nem sempre esse contexto, em que as pessoas que se incomodam com a arborização fazem o que bem entendem, foi assim. Isso mudou com uma lei aprovada na Câmara dos Vereadores e comemorada pelo governo Marchezan e seu líder de governo, na época, o Moisés Barbosa. Antes disso, a gestão da arborização ficava a cargo das diversas zonais da SMAM (a saber, a primeira secretaria do Brasil destinada ao gerenciamento ambiental de um município). As árvores de então precisavam de uma autorização de técnicos da pasta – inclusive aquelas que precisavam ser suprimidas dentro de propriedade.
Hoje, o “cuidado” das árvores é dividido entre prestadores de serviço (a CEEE Equatorial, por exemplo, contrata empresas para poda próxima à fiação elétrica), pela Secretaria de Assuntos Municipais e pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus).
Mas, veja bem: se antes havia muita demanda por inspeção, que exigia um trabalho árduo do poder público, será que o melhor para o bem comum é justamente o oposto, o liberar geral? Ouso concluir que isso é mais uma face da desconexão cada vez maior das pessoas e dos governos com a natureza. Parece que os moradores de centros urbanos esqueceram ou nunca aprenderam o significado de se ter árvores em uma cidade.
Eu cresci subindo em árvores no quintal da minha casa. Tive uma relação sentimental com uma ameixeira. No final da tarde, depois que chegava da escola, eu subia sempre nessa época do ano para me deliciar com as frutinhas amarelinhas, que agora chamam de nêsporas. Os galhos davam para o telhado da garagem e parte da casa. Até hoje me dá água na boca quando me lembro do sabor que tinham as bem madurinhas.
Até que um dia, quando eu fui, em um final de semana, para Cachoeira, constatei que meu pai havia mandado cortar no tronco a dita cuja. Foi como se eu tivesse sofrido uma facada. Fiquei enlouquecida. Com o tempo, acabei assimilando. Talvez inconscientemente meu pai havia mandado fazer isso porque tinha amputado uma das pernas. Se incomodava com as folhas e outros resíduos que caíam no pátio.
Hoje tento entender o que faz uma pessoa odiar aquilo que faz parte do ciclo da natureza. Depois de ter vivido essa situação, outras vezes fui obrigada a lidar com o corte raso de árvores que estavam saudáveis ao meu redor.
Ao caminhar pela cidade de Porto Alegre, percebo um número expressivo de árvores que simplesmente foram cortadas e seu espaço foi coberto por pedras ou cimento. A própria Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que teve importante atuação para que se tenha hoje espaços com verde na cidade, vem se pronunciando sobre a situação na qual estamos vivendo.
As palavras do presidente da Agapan, Heverton Lacerda, sintetizam o contexto: “o exemplo que as últimas administrações públicas de Porto Alegre estão dando sobre descaso com a arborização da cidade afronta os princípios da moralidade e da prevenção. O caso atual deveria ser analisado enquanto possibilidade de enquadramento como improbidade administrativa, pois a arborização urbana tem relação direta com a saúde e qualidade de vida das populações. A falta de interesse e cuidado da atual prefeitura é evidente, pode ser vista em inúmeras calçadas, praças, canteiros e terrenos da capital gaúcha. Some-se isso à intenção de adensar o Centro da cidade, temos diante de nossos olhos um lamentável projeto de distopia social.”
Árvores na cidade: uma íntima relação com a qualidade de vida
Até poucos anos atrás, os tomadores de decisão eram menos analfabetos ambientais. Eis alguns motivos pelos quais precisamos de árvores, pois creio que temos retrocedido no quesito ecocidadania.
É bom relembrar que esses seres são essenciais em lugares onde a temperatura beira os 40 graus no verão. Menos verde, mais calor. Com a chuva, especialmente a intensa, as árvores ajudam a reter a água, o líquido demora mais para penetrar no solo (experimenta despejar uma jarra d’água em um careca e outra em um cabeludo, para ver qual deles vai se molhar mais). Hellooou! Vale ressaltar que vivemos um momento jamais sentido antes, com as mudanças climáticas ditando as regras da convivência. E o Rio Grande do Sul é o estado com maior ocorrência de eventos extremos. Ou seja, se já sentimos que o clima aqui não está para brincadeira, pior pode ficar sem árvores.
Outro ponto importante é que a arborização é fundamental para a existência de outros seres vivos, como pássaros, insetos, líquens, musgos etc. São vitais para haver qualidade de vida de todos os moradores. Ou seja, as árvores prestam diversos serviços ambientais para nós, como a própria qualidade do ar que respiramos.
Menos árvore, pior para nossa saúde. Como qualquer ser vivo, elas respondem conforme o jeito que são tratadas. Elas precisam de cuidado! Sem isso, serão mais fáceis de cair, de quebrar galhos e produzir estragos. Ou seja, a culpa da situação do vegetal é de quem não o cuidou.
Se temos árvores na cidade, precisamos agradecer a quem no passado lutou muito para que elas existissem. E os ativistas da Agapan têm muito a ver com isso. Assim como um time incrível de servidores públicos que hoje estão aposentados da prefeitura de Porto Alegre. Sou grata ao Augusto Carneiro, que me explicou várias particularidades desses seres na cidade. Sem ele, Porto Alegre seria mais feia e quente. Aliás, vale conferir o vídeo em que ele e Lutzenberger falam sobre a arborização e cuidados com esses seres.
Tem um ditado que diz que as pequenas tristezas falam, as grandes são mudas. Talvez por isso que nem consiga explicar neste texto o que significa para mim terem cortado as árvores que mais davam frutos na casa onde nasci. E, adivinha, qual foi um dos motivos: porque as folhas de uma delas caíam no pátio da vizinha, que reclamou da “sujeira” no seu gramado.
Encontro Nacional de Arborização Urbana
Em 1985, foi realizado o primeiro Encontro Nacional de Arborização Urbana em Porto Alegre. A partir dessa iniciativa, os debates em torno deste tema amadureceram pelo Brasil inteiro. A capital gaúcha chegou a ser consagrada como uma das mais arborizadas do Brasil e tornou-se exemplo em cuidados e manejo de arborização urbana. Hoje, boa parte dos técnicos que construíram essa história está aposentada. Alguns seguem atuando na Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (Sbau), como Flávio Barcelos Oliveira. Ele conta que foi a partir daquele momento que foram unidos esforços para que prefeituras, universidades e institutos de pesquisa atuassem nesse tema. Flávio, aposentado da prefeitura, explica: “Ao planejarmos a arborização pública das cidades, devemos priorizar as espécies arbóreas regionais, sem sermos preconceituosos com as espécies exóticas pré-existentes.”
Confira o evento online que aconteceu na quinta, dia 16, clicando AQUI.