A difícil arte de ouvir

O Conselho de Feiras Ecológicas do Município de Porto Alegre foi contra a versão do Projeto de Lei em tramitação na Câmara de Vereadores

Elson Schroeder

Elson Schroeder

23/11/2023
A difícil arte de ouvir Divulgação

4 min de leitura

Em Porto Alegre, travestido de democracia, se encaminha o fim das feiras ecológicas como as conhecemos.

É muito triste o que vem acontecendo em Porto Alegre/RS na relação do poder público municipal e movimentos socioambientais quando se fala da construção da importante Lei das Feiras Ecológicas (PLE 037/2023) em tramitação na Câmara de Vereadores.

A atual gestão assumiu o papel de elaborar a legislação, mas em total desrespeito a uma construção coletiva de mais de 30 anos reconhecida internacionalmente. E vem usando artimanhas de pseudodemocracia, discurso de meias verdades e táticas eternizadas pelo imperador Júlio César há mais de dois mil anos.

Pessoas embaixo de placa da Feira dos Agricultores Ecologistas

Dividir para governar

“Divide et impera” (dividir para governar) foi a frase eternizada pelo ex-ditador romano na sua luta para quebrar o modelo de governo oligárquico da então República Romana e instaurar um modelo autocrático, onde as leis e decisões são baseadas nas convicções do governante. Daí surgiu o chamado Império Romano.

Em política e sociologia, o “Divide et impera” consiste em ganhar o controle de um lugar por meio da fragmentação das maiores concentrações de poder, impedindo que se mantenham individualmente. E esta tática foi utilizada quando quem ocupa cargos públicos da atual gestão enfrentou discordâncias à sua forma de enxergar a referida lei e percebeu que o coletivo, representado no Conselho de Feiras Ecológicas do Município de Porto Alegre (CFEMPOA), foi contra sua versão do PLE 037/2023 e entregou à prefeitura um compilado de seminários, reuniões abertas e debates com os anseios daqueles que vivem as feiras ecológicas.

Banca de folhas verdes na Feira Ecológica

Eu falo, mas não te escuto

Uma característica marcante na atuação da atual gestão municipal é o de só querer “falar com os seus”, ou seja, com quem pensa como ela. Outras formas de diálogo são estabelecidas apenas pro forma, como para cumprir uma instância necessária para dar maquiagem democrática ao movimento político e também ideológico que se quer impor.

Assim aconteceram audiências públicas na Câmara de Vereadores, reuniões na Prefeitura e no Conselho de Feiras Ecológicas de POA e em outras instâncias. Entretanto a “boca” do poder público sempre esteve ativa, os “ouvidos” não.

Apropriação de discurso, mas não de ação

Tragicômico é ver, dentro do projeto de lei elaborado pelo poder público municipal e no discurso de seus representantes, pinceladas de termos e bandeiras históricas do movimento ambientalista mundial e dos agricultores ecologistas e seus parceiros urbanos (moradores de Porto Alegre) que construíram há mais de três décadas as feiras ecológicas da cidade.

“Pegadas de carbono”, “autonomia e autogestão”, “agroecologia”, “diversidade”, entre outros, são expressões que estão na fala e nos artigos dos “representantes do povo”, mas tudo feito como cosméticos que tentam esconder imperfeições.

Pessoas reunidas em círculo na Feira Ecológica

Jesus, se dirigindo aos escribas e fariseus, disse: “Ai de vós, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície”.

O fato é que o projeto de lei proposto (bem como um decreto municipal já em vigor), em sua essência, verticaliza e centraliza todo o poder decisório do que vai acontecer no dia a dia das feiras ecológicas da capital gaúcha. E sem ouvir e nem considerar os atores e atrizes que fizeram esta linda construção que hoje são estes espaços não apenas de acesso a um alimento saudável, livre de agrotóxicos, mas também de educação ambiental, apoio a movimentos sociais e discussão de um mundo mais plural, humano e diverso.

Tanto é verdade que feiras ecológicas de Porto Alegre são reconhecidas por Lei Estadual (nº 15.296/2019) como de “relevante interesse cultural do Rio Grande do Sul”. Isso fere mortalmente quem é autocrático, logo vai acabar se for aprovada a atual versão do PLE 037/2023 (a prefeitura tem ampla maioria na Câmara de Vereadores).

“Eu tenho a caneta”

Daí chegamos ao argumento derradeiro que se escutou algumas vezes por parte dos representantes da atual gestão municipal. De que “é sua prerrogativa fazer este projeto de lei que vai regulamentar as feiras ecológicas de Porto Alegre/RS. Que é sua obrigação, já que elas ocupam locais públicos”.

Entretanto quem vive o dia a dia destes espaços também anseia pela lei. Também quer regrar e regulamentar, mas de forma que traga segurança jurídica às partes envolvidas (incluindo aí o patrimônio público) e respeitando uma história que vem dando muito certo há 34 anos. Que é referência mundial na sua forma horizontal e democrática de gestão. Que sabe ouvir as diferenças e gerar consensos. Que tem, claro, suas falhas, mas que sempre busca o bem comum sobre as individualidades.

Pessoas embaixo de placa da Feira dos Agricultores Ecologistas

Get up, stand up . . . Stand up for your rights

Como falei antes em Jesus, vou trazer uma referência mundana. O conhecido artista do gueto jamaicano Bob Marley, que dentro da sua sabedoria cantava: “you can fool some people some times, but you can’t fool all the people all the time. Now you see the light, stand up for your rights!”.

Que em uma tradução livre diz “você pode enganar algumas pessoas por algum tempo, mas você não pode enganar todas as pessoas todo o tempo. Agora você vê a luz, levante-se pelos seus direitos!

Publicado originalmente no SLER

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Elson Schroeder

Elson Schroeder

Jornalista da Associação Agroecológica, ativista e integrante do Spin Orgânicos do POA Inquieta

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