Receita de sopa para noites de abril

Aromas trazem memórias da sopa quente e terna

Débora Chiari

Débora Chiari

07/04/2022
Receita de sopa para noites de abril Freepik/NBE

5 min de leitura

Você abre a geladeira com displicência, como quem pensa na vida. Inclina de leve a cabeça para o lado, passando os olhos nas prateleiras, numa exploração rápida e certeira. Sua investigação volta-se agora para o gavetão das verduras - uma espécie de elo perdido onde a feira do sábado anterior jaz esquecida.

Faz um mea culpa duvidoso e admite que não deveria ter almoçado fora tantos dias. Mas seu pensamento ordinário é interrompido pelo ronco da barriga - são quase 22h. Você não jantou, a fome domina suas entranhas e a tele-entrega já encerrou. Decide continuar a empreitada.

Aqui e ali, vai encontrando alguns ingredientes: três cenouras cansadas, um chuchu querendo enrugar, ervas, algumas folhas de couve no último suspiro, dois tomates miúdos e duas abobrinhas em coma na bandeja de isopor intacta, ainda coberta com filme plástico.

Por fim, dá aquela incerta no congelador e num potinho mirrado - que passa quase despercebido - dá para ver um pedaço pequeno de ossobuco que você não usou e teimou em guardar para alguma emergência. Com os achados em mãos, lembra que ainda restam duas cebolas, alguns dentes de alho e uma batata grande na despensa.

Vai ter sopa.

Agora começa o ritual: descasca, corta, pica, reserva. Ao som da Nina Simone e com a chama do fogão a pino, ajeita a velha panela funda com água. Coloca com cuidado o ossobuco, junta algumas ervas mal amarradas, a folha de louro, o alho e a cebola inteiros.

Antes da fervura iniciar, você já tratou de encher a taça com aquele restinho de Merlot que sobrou da quarta. Melhor preparar o espírito para a espera, você pensa, enquanto pesca alguns croutons já amolecidos no pote de vidro mal fechado.

Agora o vapor e o aroma da poção borbulhante vão tomando conta da cozinha. O outono se exibe lá fora - um céu fechado, sem estrelas, acomoda os primeiros ventos de abril. Você deixa apenas uma fresta da janela aberta - o suficiente para não transformar a cozinha numa sauna.

Mas os vapores, o som do caldo ganhando vida e o cheiro teimoso da sálvia vão te envolvendo feito uma manta surrada e confortável, daquelas que já guardam as formas de quem as usa.

Lembra da casa de infância, do cheiro de pão assando pro dia seguinte, das noites de inverno com o som de brasas no velho fogão à lenha, do gosto da sopa quente e terna, sempre à espera.

Por um momento, esquece o barulho que ainda persiste na rua, o despertador que vai te arrancar da cama cedo, a discussão com a irmã ao telefone, a reunião marcada para amanhã, ao meio-dia. Como uma fresta no tempo, você se rende ao abraço da memória.

Despeja o resto dos ingredientes na panela e depois, senta junto à mesa da cozinha, permitindo que aquela mistura de cheiros e sons te leve para outro lugar. A melancolia se insinua e deixa um gosto estranho na boca, mas enquanto percorre as cenas que vem à mente, materializa uma fogueira pulsante, bem ali, na sua cozinha branca e asséptica.

Fecha os olhos e uma sequência de imagens e sensações surge, tão espontaneamente quanto a gargalhada de uma criança. Você sorri e busca o último gole de vinho, antes de interromper o transe e conferir a hora. Vai até a panela, acerta o sal e abaixa a chama do fogão. Quase pronta.

Coloca com cuidado a toalha na mesa, escolhe um belo prato, busca os talheres e deixa algumas fatias de pão cortadas no pequeno cesto trançado. Olha para a mesa posta e lembra das mãos da mãe moldando os “cabritinhos” - a pele macia e enrugada, os dedos finos, alguns já retorcidos pela artrite. A saudade escorre pelas paredes, como o vapor condensado do líquido que ainda trepida no fogão.

Espera alguns minutos e então, serve a sopa demoradamente - duas conchas, cuidando para não pingar no tecido delicado que recebe o prato quente. Senta e mira o caldo fumegante.

Agora, Nina te presenteia com “Don’t Let Me Be Misunderstood” e você sente que, nesse momento, só precisa disso. Sopra um pouco e leva a primeira colherada à boca.

Fecha os olhos e percebe que o calor se espalha pelo corpo, como um abraço que custou a chegar. Sem resistir, abandona os bons modos e devora a sopa, inclinando o prato para resgatar a última gota de caldo. Vai até a panela para repetir e quando sente que está plenamente nutrida, suspira e arremata com um gole d’água.

E é nesse instante que você percebe: preparou tudo do jeito que ela te ensinou, cada etapa - a manha rápida na hora de cortar os legumes, o espremedor de batatas amassando um pouco a mistura ao final, para dar corpo ao caldo, a pitada de noz-moscada depois de desligar a chama.

A noite segue fria e densa, mas o som do vento insistente nas janelas traz algo familiar. Você pensa no tempo, nas pessoas que se foram, no quanto a vida podia ser perfeita em meio a fragmentos de rotina. Não tem tristeza, nem dor, mas persiste uma mistura confusa de saudade e presença, de memórias e reconforto. Você respira fundo e levanta, junta a louça e abandona tudo na pia, para amanhã. Guarda o restinho de pão, amontoa as migalhas na toalha, ajeita a cadeira e apaga a luz.

Antes de ir para o quarto, para na porta da cozinha escura e silenciosa e por alguns segundos, sente um leve cheiro de pão assando. Vira as costas e, finalmente, vai para a cama, arrastando aquele cobertor imaginário e o aconchego daquele tempo distante, que o preparo de um sopa, sutilmente, tratou de resgatar.

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Débora Chiari

Débora Chiari

Jornalista que adora escrever sobre comida e ama cozinhar

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