Qualidade do ar e o desmonte da política ambiental

A fumaça que apaga estrelas, tapa o sol e impacta milhões de brasileiros está causando estragos de todo tipo

Sílvia Marcuzzo

Sílvia Marcuzzo

16/09/2024
Qualidade do ar e o desmonte da política ambiental Marcelo Camargo/Agência Brasil

11 min de leitura

O que o prefeito de Porto Alegre, candidato à reeleição, Sebastião Melo, tem a ver com a fumaça que está impactando cerca de 60% do território brasileiro? Esses dias uma pessoa levantou essa dúvida em um dos grupos de zap que participo. Creio que essa indagação merece concatenar alguns contextos onde estamos inseridos.

A fumaça que apagou estrelas, tapou o sol, está impactando milhões de brasileiros e está causando estragos de todo tipo – no bolso, nos pulmões, nas vias aéreas e muito mais que isso – tem uma relação direta com o desmonte dos órgãos ambientais, de mecanismos de controle e fiscalização ambiental e sua conexão com a saúde pública nas três esferas de governo.

E como o material particulado vem por correntes de ar que trazem a fuligem da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal e, acreditem, ainda tem gente que coloca fogo nos Campos de Cima da Serra, na região Nordeste do RS. Em meio a esse cenário, estamos vivendo um quadro de concentração de poluentes, a mais intensa já sentida pelo país. Há fortes indícios de que essa queima geral está sendo uma ação coordenada.

E aí, vou usar alguns dados que não circulam tanto pela imprensa do Sul, quiçá por outros pagos. Vale ressaltar que o governo federal tem procurado ser mais duro no tratamento aos infratores. As máquinas de grande porte, que valem milhões, têm sido destruídas nas ações dos fiscais do Ibama. E isso tem provocado um efeito estarrecedor. Como é muito mais caro desmatar com correntão ou retirando a madeira, do que simplesmente colocar fogo, muitos fazendeiros tem aplicado a segunda opção. E isso acontece principalmente em áreas de unidades de conservação e territórios indígenas.

Vale muito ler esta reportagem da Sumaúma (confira aqui) sobre o contexto no Pará. Só para aguçar a curiosidade, leiam essa declaração que está na matéria: “Eu vou incentivar para botar fogo em tudo”, disse o grileiro ao jornal Folha do Progresso. “O plano é esse. Vamos avançar com essa ideia e o governo que apague – não estão lá no Pantanal? –, que venha proteger a floresta deles.”

Trabalhei alguns anos atrás no projeto BR-163: Floresta, Desenvolvimento e Participação no segundo ano do governo Lula. A ideia era transformar a região ao longo da Cuiabá/Santarém em um mosaico de áreas protegidas. Não preciso dizer que depois dessa iniciativa, bancada pelo Parlamento Europeu e coordenada pelo Serviço Florestal Brasileiro, essa proposta não só parou, como retrocedeu. Só fiz essa observação pra dizer que conheço um pouquinho dessa realidade, pois quem ousa enfrentar esses poderosos, pode acabar com a boca cheia de formiga em alguma estrada vicinal, como também aponta a reportagem de Rafael Moro Martins, da Sumaúma. Repito: não deixe de ler. É uma aula essa matéria.

O Brasil é disparado o país com o maior número de focos de incêndio da América Latina, conforme os dados do sistema BDQueimadas do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). A Amazônia concentra a maior parcela das ocorrências, com 2.512 –ou 46,8%. O Estado de Pará teve o maior número de queimadas, com 1.484 focos registrados em 24h. É seguido por Mato Grosso (1.057) e Tocantins (545), aponta o Poder 360.

Área verde queimando

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Nobre confessa estar apavorado

A entrevista do climatologista Carlos Nobre (confira aqui) no Estadão do dia 11 de setembro é estarrecedora. Desesperadora com relação a nossa situação. Ele afirmou que nenhum cientista havia previsto o que está acontecendo para termos o ano mais quente da história.

“O objetivo era não deixar o aumento passar de 1,5ºC e, a partir de 2050, já começar a remover, no mínimo, 5 bilhões de toneladas de CO2 por ano da atmosfera, para chegar em 2100 com aumento de 1ºC. Mas infelizmente já estamos atingindo 1,5ºC. Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido”.

“No começo de 2022 a ciência previu, muito bem, que teríamos um El Niño (fenômeno climático ligado ao aumento das temperaturas da Terra) forte e a temperatura anual poderia ficar 1,3ºC acima da média. De fato, tivemos um El Niño forte, o terceiro mais forte dos registros, mas o aumento da temperatura chegou a 1,5ºC. No nosso pior cenário, chegaríamos a um aumento de 1,5ºC em 2028. Milhares de cientistas estão tentando explicar o que aconteceu. E outra: o El Niño praticamente desapareceu em maio (e começa a dar lugar ao fenômeno La Niña, ligado ao resfriamento do planeta), mas os oceanos continuam quentes, continuam induzindo a seca na Amazônia. Estamos tentando explicar por que aumentou mais do que tínhamos previsto”.

Consequências da cultura eurocêntrica

O triste, o cruel, o complicado e, nem sei como expressar isso, é que boa parte desse povo que estimula a destruição da floresta para colocar gado ou virar monocultura de soja é gaúcho ou descendente de imigrantes que chegaram no Sul em séculos passado. E os mandantes, nem moram na região! Ou seja, na cabeça dessas pessoas, a cultura colonial de impor o seu modo de vida e sua produção é algo natural, pois simplesmente se acham superiores ao modo de vida das populações tradicionais, como indígenas e ribeirinhos.

Em resumo, nós daqui do garrão do Brasil estamos respirando a consequência de um modelo de desenvolvimento que ameaça a nossa própria sobrevivência. Algo muito incentivado por candidatos de extrema direita que classificam o cuidado com o meio ambiente como algo de esquerda ou de alguém que está agindo em favor da Europa, como sentenciou o entrevistado da matéria da Sumaúma sobre a Marina Silva.

Pra finalizar, se você ainda não relacionou o que tudo isso tem a ver com a prefeitura da Capital gaúcha, serei mais direta. A gestão ambiental do município, do Estado do RS, inclusive, tem desmantelado os departamentos, os mecanismos de controle ambiental, em favor dos interesses do sistema “libera geral".

Hoje a prioridade é dar licenças, não interessa o impacto do entorno, tudo é motivo para alguma medida compensatória que consiga recursos para quem está no comando. O número de funcionários concursados das pastas da área, tanto no Estado, quanto no município, tem diminuído a cada ano. As administrações que são apoiadas por pessoas, empresas, movimentos como esses da Amazônia, sabem muito bem como manipular os distintos mecanismos de comunicação.

E isso é nítido ao constatarmos como a atual administração municipal foi e é negligente, mas desponta como líder nas pesquisas das eleições. Esta administração conta com integrantes que pensam como esses fazendeiros da Amazônia.

Segue na linha do governo Marchezan. Agravou o desmonte de todo o sistema de proteção contra as cheias (o Departamento de Esgotos Pluviais foi extinto na gestão anterior), não ouve o movimento ambientalista, maltrata os catadores de resíduos, enfim, vou parar por aqui, mas garanto que a lista é grande para atestar seu desprezo pelos cuidados ao ambiente e à saúde pública. E o que passamos durante o desastre tem íntima relação com as decisões desse governo.

Aliás, por que será que antes dessas últimas administrações não morria gente de dengue? O que essas gestões têm feito para se adaptar à emergência climática entre as suas distintas áreas? O que os tomadores de decisão fazem com os dados epidemiológicos?

Tanto na Capital, quanto no Estado, não temos mais uma rede pública de monitoramento da qualidade do ar. Já tivemos. A Metroplan, que era o órgão que pensava o planejamento da região metropolitana, foi extinta. Por tudo isso, suplico: se você chegou até aqui, procure conversar com gente que deverá votar nesse grupo que quer se manter no poder. As árvores, os parques, a nossa qualidade de vida, a sua, a nossa saúde está em risco.

Precisamos comunicar isso para fora das nossas bolhas. Porto Alegre já foi um exemplo de qualidade de vida. E hoje, desabafo: tem sido mais que desagradável caminhar pelas ruas da cidade e se deparar com tanta sujeira, falta de zelo. É preocupante. E os imóveis no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre serão cada vez mais desvalorizados (usei um argumento que alguns poderão compreender melhor o que representa não se dedicar ao cuidado socioambiental).

Qualidade do ar péssima

Porto Alegre esteve com uma das piores qualidades do ar do Brasil. Vale conhecer o trabalho da ONG Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), que disponibiliza um histórico com dados de todas as estações brasileiras na Plataforma da Qualidade do Ar.

O site reúne e padroniza os dados do monitoramento da qualidade do ar gerados pelo poder público, fornecendo informações que integram a base de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Entre 2010 e 2019, foram disponibilizados registros de 82 localidades. (Perceba: o RS não dispõe de uma rede adequada de monitoramento pública, que analise diversos parâmetros. Algumas indústrias e empresas tem esse acompanhamento, mas os dados não são públicos.)

Nas regiões metropolitanas brasileiras, o trânsito e as atividades industriais costumam ser as principais fontes de emissões de poluentes do ar. No entanto, cada vez mais frequentemente as queimadas próximas ou até distantes aos centros urbanos estão impactando a vida de grande parte da população do país tanto no interior quanto nas cidades. “O transporte da poluição do ar que estamos vendo pelo país mostra a necessidade de uma gestão nacional integrada da qualidade do ar. Consolidar a Rede Básica de Monitoramento é o primeiro passo”, David Tsai, gerente de projetos do IEMA.

Plantas queimando

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Material particulado

A piora da qualidade do ar se deve, principalmente, à alta concentração de materiais particulados (MP 10 e MP 2,5, os números referem-se aos tamanhos das partículas) que têm atingido várias regiões do país, com destaque para Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Esses materiais são provenientes das queimadas que ocorrem em diversos estados brasileiros somadas ao tempo seco, típico do inverno.

Os materiais particulados são poluentes particularmente perigosos, pois suas partículas finas podem penetrar profundamente nos pulmões, causando doenças respiratórias e cardiovasculares, além de aumentar o risco de problemas como infarto e derrame.

No total, nove poluentes são regulados no Brasil por seus reconhecidos danos à saúde: fumaça, partículas totais em suspensão (PTS), partículas inaláveis (MP10), partículas inaláveis finas (MP2,5), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de nitrogênio (NO2), monóxido de carbono (CO), ozônio (O3) e Chumbo (Pb). Os responsáveis por esse monitoramento são os estados, que podem contar com recursos federais.

Monitorar é preciso

“Embora nos últimos dias tenhamos observado os efeitos da qualidade do ar no céu, é essencial disponibilizar informações precisas à população sobre a real situação da qualidade do ar. Essas informações são primordiais para implementar medidas de proteção adequadas, desenvolver políticas eficazes e comunicar os impactos à saúde de forma precisa”, afirma Helen Sousa, pesquisadora do IEMA.

Para reduzir o lançamento de poluentes do ar, é fundamental que haja um esforço coordenado, não só para combater as queimadas, mas o poder público precisa se empenhar na adoção de políticas para diminuir as emissões do setor de transporte e intensificar a fiscalização sobre a poluição industrial. A falta de planejamento estratégico e a padronização inadequada dos dados de monitoramento também agravam esse cenário, dificultando a publicação de informações e a elaboração de relatórios consistentes.

Por fim, apesar da poluição do ar agora ser visível, o Brasil ainda carece de uma rede nacional de monitoramento abrangente e um sistema completo de informações sobre a qualidade do ar. Apenas 13 dos 26 estados contam com estações automáticas de qualidade do ar, equipamentos fundamentais para a avaliação da poluição, mostra a Plataforma da Qualidade do Ar do IEMA. Sem elas, é difícil avaliar a gravidade da poluição.

Confira algumas dicas da professora Mellanie Fontes-Dutra da Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Ela é integrante da Rede de Emergência Climática e Ambiental (Reca). É biomédica, habilitada em Virologia, Patologia Clínica e Bioquímica, mestra e doutora em Neurociências, pela UFRGS, e pós doutora em bioquímica pela UFRGS e em Virologia, pela Feevale. Assim como eu, muita gente tem tido problemas nas vias respiratórias nos últimos dias.

Devemos usar máscaras?

Sim, máscaras PFF2/PFF3 e N95 são recomendadas para cenários de baixa qualidade do ar, especialmente com grande concentração de partículas finas, como PM2.5. Em São Leopoldo (RS) a gente percebe que na última semana houve momentos com grande concentração desse material particulado fino, em especial no dia 10 e 11/09. Essas partículas finas podem trazer prejuízos à saúde, e a exposição, principalmente pelas mucosas do corpo, precisa ser reduzida

Que medidas de segurança devemos adotar?

– Usar de máscara PFF2/PFF3 caso necessite se expor ao ar livre;

– Evitar se expor ao ar livre, durante o dia e a noite, durante os períodos de baixa qualidade do ar;

– Hidratar-se para evitar o ressecamento das mucosas;

– Fazer lavagem nasal, para melhorar a mucosa do nariz, a garganta e o trato respiratório e usar nebulizador (para as vias aéreas superiores e inferiores) com solução fisiológica;

– Usar umidificador nos dias mais quentes e com umidade relativa do ar baixa. Caso não tenha umidificador, é possível usar toalhas molhadas estendidas em um varal de chão, e/ou baldes com água. A água vai evaporando e umidificando o ar. Mas é preciso ter um cuidado especial com baldes cheios de água, se tiver idosos e crianças em casa;

– Procurar atendimento médico, se tiver algum sintoma respiratório ou de outra natureza que fique acentuado durante esse período de pouca qualidade do ar;

– Manter portas e janelas fechadas, para diminuir a entrada da poluição externa no ambiente;

– Usar purificadores de ar ou ar condicionado/split em casa, mas é importante ver se se dispõe de filtro HEPA e que não produza ozônio.

Publicado originalmente no SLER

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Sílvia Marcuzzo

Sílvia Marcuzzo

Sílvia Marcuzzo é jornalista, "artivista" e participa de coletivos e redes onde procura articular ações e disseminar informações sobre como a comunicação se relaciona com a sustentabilidade. Instagram @silmarcuzzo

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