Acredite se quiser!
A noite em que a minha cozinha virou um divã de eletrodomésticos

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Eu sei que você vai duvidar, mas juro que não bebi nada de álcool e nem ingeri cogumelos mágicos antes de dormir, isso aconteceu de verdade: acordei no meio da noite com um zum-zum-zum que vinha da cozinha. Me levantei e no modo “James Bond de pijama”, fui conferir.
O que eu vejo? Uma sessão de terapia acontecendo entre o Fogão e a Alexa, a assistente virtual que vive em cima do balcão. O Fogão abriu o coração e a Alexa virou terapeuta.
Eu já sabia que tem gente que desabafa com a IA, mas eletrodomésticos? Seria uma “eletroterapia”? Curioso, fiquei de espião no corredor. O Fogão falava, com saudades, dos tempos em que era alimentado com lenha. Disse que era o coração quentinho da casa, que as famílias se reuniam em volta dele, contavam causos, e ele se sentia abraçado. Aí, a Alexa, com aquele espírito de terapeuta, perguntou: “E como você preenche este vazio hoje?”
Espichei o ouvido querendo saber a resposta. O Fogão, melancólico, disse entender a evolução tecnológica, de ter saído da lenha para o gás, e agora ter se transformado num cooktop de indução, tão moderno que nem esquenta mais o ambiente.
“Pior, hoje sou só uma opção na cozinha!”, reclamou. “Tenho que competir com o Micro-ondas, que aquece tudo num piscar de olhos, mas deixa gosto de borracha, e com a Air fryer, essa novata que promete batata crocante sem óleo e parece uma influencer de Instagram. Mas o verdadeiro vilão é o tal de delivery, que chega prontinho, rouba o meu protagonismo e aquele momento de convivência com quem está cozinhando.”
Crise da meia idade
Aí, a Alexa, pergunta se ele não estaria vivendo a “crise da meia-idade”, aquele período de transição emocional, marcado por reflexões sobre a vida, finitude e o futuro. Nesse momento a Geladeira, que até então estava só observando com aquele olhar frio, abriu a porta e entrou na conversa. Minha cozinha estava parecendo um episódio de “Família Monster”.
“Crise da meia-idade? Pelo amor de Deus! Olha para mim: eu continuo fazendo o mesmo desde as minhas bisavós: conservar a comida. Só que agora estou cheia de upgrades: frost free, french door, aço escovado, duas portas, três portas… e no final, o que botam dentro de mim?”.
Alexa continua com a anamnese: “Mas afinal, o que te causa tanta ansiedade?”. E a Geladeira dispara: “É o fast food! Minhas gavetas estão vazias de frutas e verduras. Só guardo cerveja, refrigerantes e congelados. Até o leite e o suco agora ficam meses fora de mim, dentro de caixas mágicas. Como pode isso durar tanto tempo sem estragar? Deve ser puro conservante!”.
Estas manifestações me deixaram reflexivo, então ouvi um “TRRRRCC”, era a gaveta dos talheres se abrindo e eles querendo “meter a colher” na conversa.
“Dra. Alexa, o que a humanidade fez para voltar para a pré-história?”. “Como assim?”, perguntou a Alexa. “Na pré-história, os humanos comiam com as mãos! Nós, os talheres, fomos um marco civilizatório! As pessoas aprenderam a comer com talheres e logo tinham lindos faqueiros, de prata, com dezenas de peças que ficavam de herança! E hoje? A comida vem enrolada num papel e mandam garfinhos de plástico, que usam UMA vez e jogam fora! São importados lá do outro lado do mundo para virar lixo aqui! Tudo por preguiça de nos lavar! É um absurdo!”
Voltei para a cama e não consegui dormir pensando nestas conversas. O fast food, o delivery e os ultraprocessados não estão apenas aposentando o Fogão e afastando as frutas da Geladeira: estão comendo a nossa convivência e, de lambuja, a nossa saúde. Tudo virou prático e instantâneo: fast food, fast fashion, fast love…
E o tempo livre que sobra? Bem, esse a gente gasta rolando a tela do celular.
Fica o convite: da próxima vez que você acordar no meio da noite, dê uma espiada se não está rolando uma conversa na sua cozinha. Se ouvir alguma coisa, me conta. Senão todo mundo vai achar mesmo que eu sonhei com um grupo de eletrodomésticos em crise existencial…
Ou que a Alexa está apenas fazendo stand-up.
(Tenho a pia por testemunha, que não deixa vazar nada, mas se for inquirida pela Justiça, poderá confirmar tudo o que eu ouvi).